quinta-feira, 26 de julho de 2012

- Mas o que um escritor faz?


O menino olhou-o, com os olhos brilhando de curiosidade.
- Escreve, oras – o senhor observou-o brevemente e deu de ombros, voltando a fitar o papel a sua frente.
- Mas escreve o que?
- Tudo o que der na telha. Qualquer coisa mesmo. Pode escrever sobre o mar, sobre o sol, sobre um menininho como você. Todas as coisas que vierem na cabeça – respondeu um pouco impaciente.
Os carros passavam do lado de fora do escritório, fazendo um barulho praticamente ensurdecedor.
- O senhor não precisa de silêncio para escrever?
- Não... Eu posso me inspirar no barulho. Posso me inspirar até nos seus sapatos sujos de lama que agora infestam meu chão de sujeira.
A criança olhou para seus sapatos e suas bochechas ganharam um tom avermelhado. Mesmo embaraçado, decidiu prosseguir.
- Mas o que é inspiração?
- Tudo que apareça em seus pensamentos que te possibilite de escrever.
Ele ficou em silêncio por um segundo e o velho começou apaixonar-se por aquele menino, tão ingênuo e tão curioso. Por que queria saber tanto a respeito da escrita? Será que era chegada a hora de repassar todos os seus conhecimentos?
- Será que o senhor... – ele começou, envergonhado.
- Peça, meu filho.
- Poderia me ensinar a escrever?
O senhor barbudo, de óculos embaçados e unhas largas maravilhou-se com a pergunta. Seus olhos brilharam e seu sorriso alargou-se, tomando conta de toda a sua face.

Todos os dias, pela manhã, o menino ia até a sala do senhor, que lhe dava uma folha por dia com uma frase, para que ele pudesse copiá-la embaixo. Ao final da cópia, o garoto pegava sua folha e mostrava ao barbudo, orgulhoso de seu feito. E perguntava-lhe por fim o que aquelas letras significavam. Também não sabia ler.
Eles riam das frases. Algumas não faziam o menor sentido para aquele pequeno ser, mas causavam uma sensação de paz que nenhum outro feito lhe causava.

- O que significa essa? – perguntou, ao quinto dia.
- “Davi colecionava elefantes magros. E sonhos.”
- Que esquisito... Elefantes não são gordos?
- A maioria sim, meu filho. Mas a imaginação de Davi era muito poderosa até para guardar elefantes em um pote. Um de seus sonhos era ver um elefante magricelo, que coubesse no baú de livros que havia em sua casa.
E o menino sorriu, satisfeito com a resposta.

- E essa? – perguntou, ao sétimo dia.
- “Há mais morangos no seu sorriso do que em qualquer canto do planeta, porque eu gosto de morangos.”
O garoto pouco entendeu... Como haveria morangos no sorriso?
- Você pode por qualquer coisa que você goste no sorriso de alguém, para que possa sorrir por dois motivos.
E o menino sorriu, satisfeito com a resposta.

- Qual seu significado? – perguntou, ao décimo dia.
- “Toda noite, Marcelo pedia que o céu descesse um pouco mais, para que pudesse se juntar às estrelas.”
Essa ele pôde compreender. Também desejava unir-se às estrelas e brilhar com elas.
E sorriu, satisfeito com a própria constatação.

Ao vigésimo dia, o senhor resolveu dar-lhe uma frase mais curta. Apenas três palavras. E pediu-lhe para voltar no dia seguinte, com a frase escrita três vezes. O menino assentiu e voltou, como esperado, no manhã que se seguiu. Porém, voltou diferente, aquelas palavras que ele mal sabia o significado mexeram com ele de uma forma que era impossível explicar. Ele sentia-se bem com elas. Dormiu com elas e acordou com elas. E foi com elas grudadas ao seu peito que chegou ao escritório naquele dia.
O velho sorriu quando o avistou.
- E então... Escreveu?
- Sim – e mostrou-lhe o papel, onde se repetiam três vezes aquelas mesmas três palavras – O que eu escrevi?
- “Eu sou feliz.”
- Mas o que é ser feliz?
Os olhos daquele homem se encheram de lágrimas. Como explicaria a um menino pobre e iletrado o que era felicidade? Como explicaria a alguém órfão o significado de se sentir alegre?
- Ser feliz é poder escrever – segredou-lhe.
- Então eu sou feliz.
- É sim – sorriu o senhor.
- Por que o senhor me mandou escrever a frase três vezes?
- A primeira e a segunda eram apenas para observação. A terceira era para que você acreditasse nas palavras, mesmo que não pudesse lê-las.
- Eu acredito.
O velho amigo deu então um caderno ao menino, onde ele passaria as outras frases para cópia e ensinaria verdadeiramente a escrita a ele, desde o princípio.

E a cada manhã ele escrevia aquela mesma frase em seu caderno, nunca se cansando dela. Acreditava fielmente nela. Assim, todos os dias ele era extremamente feliz.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Vinte de julho

Eu sorri. Eles sorriram. Nós sorrimos juntos. Eu chorei. Eles choraram. Nós choramos juntos. Lágrimas de felicidade ou tristeza. Abraçados. Separados. Olhando nos olhos ou evitando olhar-se para não chorar ainda mais. Eu desabafei. Eles ouviram. Eles desabafaram. Eu ouvi. Eu falei pelos cotovelos, como sempre, e eles só sorriram. Eu abaixei a cabeça e eles a levantaram. Eu silenciei e eles entenderam. Eles falaram por mim quando eu não tinha palavras, tomaram minhas dores, foram parte da minha felicidade. Meus olhos brilharam e eles já sabiam o porquê antes mesmo de eu mesma compreender. Eu caí e eles me levantaram. Eu permaneci de pé apoiada nos ombros deles. Eles estiveram comigo contra o mundo, contra tudo e todos; ficaram comigo até o amanhecer. Eles cuidaram de mim quando eu precisei ser cuidada, me fizeram rir quando eu achei que nenhum sorriso poderia escapar dos meus lábios. Eles me emocionaram, fizeram meu coração bater mais rápido.
Eu quis desistir, eles me puxaram de volta. Eu quis ir em frente e eles me deram a mão. Eles me disseram "salta, que eu salto com você". Eu desejei, eles arriscaram por mim e comigo. Eu precisei e eles me deram. Eu os amei e fui amada por eles. E eles foram e são os melhores amigos do mundo. Enquanto eu só posso agradecer por tê-los em todos os momentos da minha vida.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Quando se amavam...

"(...) Eram como ar e pulmão, artérias e coração. Precisavam-se. E, por mais que fossem inegavelmente iguais, completavam-se.
Seus olhos azuis contrastavam com os olhos castanhos dela, numa mistura de cores quase perfeita. Ela não conseguia parar de admirá-lo e ele não tirava seus olhos dela. Estavam apaixonados em seu grau mais elevado. Não podiam evitar, porque era óbvio que encaixavam-se, formando o quebra-cabeça mais certo que já haviam montado. As peças dele tinham o contorno milimetricamente calculado para que pudessem juntar-se às dela.
Quando ele a tocava, era como se o céu descesse um pouco; como se eles também fizessem parte da constelação. Quando ela o beijava, o amor praticamente podia ser visto, como uma aura ao redor dos dois. Quando se chocavam, era como se todos os circuitos elétricos se encontrassem dentro de seus corpos, ligados a duzentos e vinte volts. Quando se amavam, o mundo inteiro não precisava mais existir, por estar dentro deles."

18/07/2012

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O segundo príncipe

"Cavalo branco. Nas mãos, ao invés de uma espada, um livro de poesias: Carlos Drummond de Andrade. Sua boca recitava algum poema de amor. Ela só ouvia alguém murmurando, estava muito longe. Muito mais do que gostaria de estar.
Debaixo de uma árvore, lotada de maçãs, ela se encontrava, chorando baixinho. Segurava com firmeza também um livro. Carlos Drummond de Andrade e suas declarações de amor. Soluçava, à sombra da árvore. Ao seu lado, uma foto, parecia um príncipe, com um sorriso vitorioso, segurando uma espada. Outra foto: ela e seu príncipe valente em cima de um majestoso cavalo.
Pegou a segunda foto e rasgou-a. As lágrimas formavam uma cachoeira em seu rosto. Ainda gostava dele, porém ele não a compreendeu... Não conseguiu entender que ela não precisava de coragem ou de uma espada que provasse sua bravura. Não. Ela queria apenas uma flor, um carinho, uma música. Apaixonou-se por ele porque pensou ser ele o seu príncipe encantado. Mas não era. Seu reino era, de fato, muito bonito e continha um jardim com diferentes tipos de flores. Nenhuma dada a ela. Ouvia-o cantar todos os dias para agradar o povo. Nenhuma música para ela. Presenciava-o falando de amor para as meninas mais novas do reino que também sonhavam com seu príncipe. Nenhuma declaração para ela.
Amou-o por muito tempo e acreditou ser amada também, mas não compreendia a sua forma de amar. Sabia que era, porém não sentia-se assim. Não podia ir embora porque simplesmente seu coração a esmagava toda vez que pensava em deixá-lo. O que iria pensar a população dos dois reinos? O que ela seria sem ele? Afinal, ele a salvara. Ele era aquele que fora prescrito para ela. E, mesmo com todas essas certezas, ela ainda sentia-se tão longe... Tão longe do amor verdadeiro, do conto-de-fadas. Tão longe dos sonhos... Tão longe de si mesma: havia parado de escrever em seu diário, de cantar e de sorrir com os pássaros pela manhã.
Um dia, cansou-se de tentar compreender. Arrumou o que tinha de mais importante e saiu, na calada da noite, pelos bosques que ainda não conhecia. Teve medo mas, ao mesmo tempo, uma sensação de liberdade magnífica apoderava-se dela.
Correu até cansar e cair debaixo de uma árvore, pondo-se a chorar. Olhou o livro que estava grudado ao seu peito e folheou-o. Tentou sorrir, mas não conseguiu. As lágrimas rolaram em sua face até o entardecer. Até a hora em que o segundo príncipe apareceu.
Ela olhava, ainda fixamente, a foto dele. Abriu novamente seu livro e recitou-o em voz alta. As palavras saltavam de seu coração e eram proclamadas furiosamente.
O cavalheiro, intrigado, aproximou-se e, fechando o livro que estava em suas mãos, observou-a, encantado. Ela ainda não o tinha avistado e ele chegou ainda mais perto, sussurrando a continuação do poema que ela lia. Parou e olhou-o. Ele estendeu seu livro a ela. Sua respiração falhou e seus olhos brilharam. Os dele também acenderam-se. Sorriram: era o mesmo livro.
Rasgou a primeira foto."

domingo, 8 de julho de 2012

Ela tropeçou.

Mas, na verdade, era como se tivesse caído do 58º andar.
Ela subira muito rápido. Foi pelas escadas, pois o elevador seria mais rápido do que ela poderia suportar. Caiu algumas vezes nas escadas e, por mais que subisse calmamente, era como se tivesse chegado ao destino em segundos. Encontrou, pelo caminho, pesadelos e pecados que precisou de força para ultrapassar. Caiu sim, mas pisou neles e deixou bem claro que o que queria realmente era o mistério. Aquele mistério que puxava-a, que dava a ela cada vez mais energia para continuar seu caminho tortuoso.
Cansou, suou, transpirou e quase desistiu, porém estava ali: 57º andar. Faltava apenas um. O mistério chamava-a por todos os lados, gritando seu nome. Decidiu prosseguir o seu caminho, sorrindo muito mais do que o cansaço permitia.
Chegou e não viu ninguém. Debruçou-se sobre a mureta e deixou o vento lamber seus cabelos, deixou-se saudar pelo sol. Palavras conhecidas foram sopradas ao seu ouvido. Virou-se e continuou sem enxergar. Palavras doloridas, que a castigavam. Onde estava o seu mistério? Ele agora falava com ela e suas palavras a atingiam como flechadas. Doía muito. Sentiu um arrepio e teve medo. Pela primeira vez teve medo de estar ali.
Continuou observando a paisagem, esperando que algo acontecesse. De repente, foi empurrada. Por alguém que não conseguiu distinguir, pois as memórias recentes não permitiam que a conhecesse. Foi brutalmente empurrada, andares abaixo... Queda livre. Os sonhos destruindo-se mais e mais a cada andar.
No 2º andar, sorriu, tendo certeza do seu destino. O que não esperava era que, ao chegar, elas estariam lá. Com aqueles colchões de desenho animado que não a deixaram machucar-se. Não teve ferimentos aparentes, mas teve no seu coração. Porém elas, suas únicas verdades, as pessoas com que mais poderia contar, as amizades mais sólidas, curaram tudo. O tempo fez seu trabalho e os sorrisos foram possíveis graças a elas. O refúgio, o abrigo, o colchão, a segurança... Tudo encontrou nelas.
E não existia mais mistério, pesadelo ou pecado que fosse maior do que elas. Porque elas eram o amor.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Linha do horizonte

Sentou-se na areia da praia, os últimos raios de sol a convidavam a sorrir. O mar estava calmo, assim como seu coração. O céu azul trazia-lhe paz. Olhou a paisagem ao seu redor e agradeceu mentalmente por estar viva. A linha do horizonte falava-lhe sobre felicidade. Sorriu. Os ventos sopraram vozes conhecidas, frases já decoradas. Diante dos seus olhos, como um filme, passaram os seus mais recentes momentos: seus devaneios, choros, mágoas, dor. Fazia um tempo que não experimentava aquela felicidade que a brisa trazia. Sorriu novamente. Havia crescido. Depois da tempestade, finalmente apareceu a calmaria. E aquela menina, antes assustada, agora transformava-se em mulher. Parecia ser possível acompanhar a sua passagem... Tudo modificava-se diante dos seus olhos. Era como mágica. As gaivotas saudavam-lhe e o mundo parecia abraçá-la, acolhê-la como há muito não acontecia. A sensação de preenchimento encheu-a por inteiro; ela estava e era feliz. E, junto com o sol, despediram-se as tristezas. Dando lugar a lua, o sol prometeu-lhe a alegria e ela, encantada, prometeu ao sol que sempre falaria de amor. Porque amor não era ele. O amor estava dentro dela.

domingo, 1 de julho de 2012

Não quero mais falar de amor

Não quero mais falar de amor
Enquanto essa palavra rimar com dor
Enquanto ela tiver o seu sabor
Enquanto não me der mais aquele torpor

Não quero mais falar de amor
Enquanto a noite roubá-lo de mim
Enquanto o dia lembrar-me que será sempre assim
Que esse amor agora teve um fim

Não quero mais falar de amor
Enquanto ele insistir em trazer à memória
Aquele monte de história

Não quero mais falar de amor
Enquanto ele significar abandono
Enquanto não possuir dono

Não quero mais falar de amor
Enquanto a madrugada continuar tão fria
Sem seu abraço que me aquecia
Sem aquela boca que me sorria

Não quero mais falar de amor
Enquanto as estrelas não brilham
Enquanto os lábios não se tocam
Enquanto as flores não desabrocham

Não quero mais falar de amor
Enquanto recordar-me do que não posso ter
Enquanto for o que eu não posso ser

Não quero mais falar de amor
Enquanto não souber mais o que fazer
Enquanto ele não significar mais eu e você.